EE 22 – UM EXERCÍCIO DIÁRIO

Por Regina Console Simões (*)

Alguns anos atrás durante uma aula no curso de Espiritualidade e Orientação Espiritual (ECOE) me chamou a atenção a postura de um professor perante perguntas feitas pelos alunos. Não existia pergunta ou questionamento que ele não desse uma resposta embasada, não importando se esta fosse sobre algo superficial, sem valor, apropriada ou profunda. Todas, sem exceção, mereciam atenção.  Isto me marcou.   Aos poucos me vinha à mente a frase “salvar a afirmação do próximo”, que ficava voltando com o passar dos dias.  O tempo passou e me esqueci, mas não perdi o sentimento que este momento me gerou.

Quando do período de campanha das eleições de 2018, a polaridade e agressividade na troca de opiniões me fez voltar este momento vivido: “salvar a afirmação do próximo”, mas que dificuldade. A paixão de opinião me levava ao embate muitas vezes infrutífero e destruidor.   Por mais que se justificassem as discussões, elas não eram positivas e não deixavam paz.  Como é difícil escutar, sendo mais fácil falar.  Agora vejo esta mesma polaridade retornar frente ao enfrentamento do Covid-19.  Acontecimento forte e universal que abala todas as sociedades e expõe a fraqueza dos sistemas econômicos, de saúde, de cooperação, científico, político entre tantos outros. 

A fonte da frase “salvar a afirmação do próximo” está no Pressuposto dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio – EE22 : “(1) Para que mais se ajudem tanto quem dá os exercícios como que os recebe, (2) é necessário pressupor que todo bom cristão deve estar mais pronto a salvar a afirmação do seu próximo do que a condená-la. (3) Não a podendo salvar, pergunte como ele a entende.  Se a entende mal, corrija-o com amor. (4) Se isto não bastar, recorra a todos os meios convenientes para que, entendendo-a bem, ela seja salva”. [1]

Porque será que Santo Inácio coloca este apontamento logo após o Título (EE21) e até antes do Principio e Fundamento (EE23)?  Parece-me que o Santo já queria deixar um alerta para evitar que as paixões humanas se sobrepusessem a finalidade.   Deixo aqui minha reflexão, aberta a todo e qualquer que a complemente com sua experiência pessoal.  E de antemão alerto: de nada vale um conhecimento se ficar somente na esfera intelectual, pois a caminhada espiritual só tem sentido quando refletida na própria vida.   

  • Para que mais se ajudem tanto quem dá os exercícios como que os recebe,

O verbo que inicia o EE22 é o verbo AJUDAR.  Ajudar significa auxiliar, favorecer, reforçar, socorrer, prover conforto, dar suporte, isto é, alguém faz algo a outrem para que este melhor enfrente algo que é difícil, penoso, dificultoso fazer sozinho.  É uma afirmação direcionada a quem dá e a quem recebe os exercícios espirituais, porém pertinente a todos na dinâmica das relações da vida cotidiana.  Inácio alerta as partes que estas são responsáveis pelo bom caminhar dos diálogos que virão ao longo do percurso, responsabilidade esta de forma coletiva e individual.

  • é necessário pressupor que todo bom cristão deve estar mais pronto a salvar a afirmação do seu próximo do que a condená-la.

– é necessário pressupor

Esta afirmação é forte = é necessário pré-supor, supor de antemão, antes de tudo.  Não está dizendo que é facultativo, ao contrário é uma condição essencial.  Se nos declaramos ou desejamos percorrer o caminho para bons cristãos devemos agir como tal. 

– estar mais pronto a salvar…do que condená-la

Esta parte é a mais desafiante.  Para salvar eu preciso identificar que aquilo que estou vendo (âmbito da visão) é importante.  O mesmo se passa no escutar (âmbito da audição).  Na maior parte das vezes não escutamos, pois ao mesmo tempo em que ouvimos já estamos raciocinando internamente a resposta.  Vamos peneirando a fala e contra argumentando interiormente.  Não dedicamos a total atenção numa escuta plena e silenciosa para depois nos expressarmos.  Somos chamados a nos  desenvolver para um nível de escuta empático, onde se busca primeiramente entender claramente o que o outro quer dizer para depois fazermos nossa consideração.  E isto não se aplica somente no escutar, mas também e principalmente, no ler mensagens que fluem em grupos de “whatsapp” e outras redes sociais. 

Nem sempre usamos as palavras mais corretas para nos expressarmos e a mensagem fica truncada.  Nossas ideias estão organizadas no cérebro sob uma aparente coerência lógica diz Catalán em seu livro.[2] No entanto esta aparente lógica está apoiada em preconceitos não questionados, imagens errôneas da realidade, afirmações não demonstradas e falsas associações de ideias.[3]  Não é difícil, por vezes, pegarmos experiências individuais e particulares e  generalizarmos assumindo-as verdadeiras para qualquer situação.  E mais, verdadeiramente acreditamos naquilo que estamos falando, é sincero.  Pedro, afirmou que iria seguir Jesus até o fim e ele acreditava mesmo nisto até se viu exposto a uma situação de perigo, quando então nega conhecer Jesus.  Pecamos por ingenuidade quando acreditamos que é verdade tudo aquilo que afirmamos sinceramente… a motivação de nossos atos está num nível mais profundo que o observável reafirma Catalán.[4]

(3) Não a podendo salvar, pergunte como ele a entende.  Se a entende mal, corrija-o com amor.

Quando ouvimos ou lemos com toda a atenção o que está sendo dito ou escrito, por vezes vamos perceber erros que temos a responsabilidade de corrigir.  Em Mt 18, 15-20 o apóstolo aponta como proceder em desentendimentos e, as instruções ali descritas, se aplicam muito bem a toda e qualquer correção que se faça necessária para melhor encaminhar meu próximo.   

  • Se isto não bastar, recorra a todos os meios convenientes para que, entendendo-a bem, ela seja salva

Ainda que tudo tenha sido feito para melhor compreensão e salvar a afirmação em questão, existem 3 atitudes básicas que merecem ser reforçadas ao longo do processo:

1ª atitudeRespeito: temos que ter a consciência da originalidade de cada ser, acolhendo sem julgamento ou moralização o que se é dito. A consciência é o sacrário individual de todo cristão.

2ª atitude – Lucidez: ter um olhar que discerne a desordem inicial que deve ser superada.  Desmascarar os enganos, principalmente aqueles sob a aparência de bem.

3ª atitude – Fé e Esperança: na possibilidade de melhora e progresso do nosso próximo.

Ao final, se restar que não se encontre um entendimento comum, lembremos de que é fundamental nos entregarmos ao Espirito Santo para que nos ilumine em nossas ações. Nunca é demais diariamente, antes de levantar, oferecer nossa memória, inteligência e vontade ao Espírito Santo a fim de que nossas intenções, decisões e ações sejam única e exclusivamente ordenadas para o louvor de Deus.   O EE22 é um exercício para nossa vida diária frente a tantos confrontos de opiniões nas redes sociais, em família, com amigos e em tudo e em qualquer lugar.  Assim seja!

(*) Escrito fruto de conversas e considerações entre amigas inacianas, a saber:  Adna Haddad, Lucia Lima Rodrigues e Maria Angela Bragatto Lemos


[1] LOYOLA, S.I. Exercícios Espirituais – Apresentação, tradução e notas do Centro de Espiritualidade Inaciana de Itaici. São Paulo: Edições Loyola, 2002. 2ª ed. p. 21.

[2] CATALÁN, J.O. Guia da Vida Interior, São Paulo: Edições Loyola, 2008. p. 31.

[3] Ibid.

[4] Ibid p. 39.

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