O movimento de Jesus de Nazaré e a religião católica Nos últimos sessenta anos, diferentes acontecimentos no interior da Igreja (Conc. Vat. II, Conf. de Medellin e Puebla, eleição do Papa Francisco etc.) significaram para muitos cristãos um hálito, um sopro de esperança e sonho em seu caminhar atrás das pegadas de Jesus de Nazaré. Tais eventos defenderam com veemência uma renovação profunda, convidando um retorno às fontes, às origens do movimento iniciado por Jesus. Apoiados por esta intuição muitos cristãos iniciaram um caminho para conhecer mais a fundo o Jesus histórico, sua mensagem e seu movimento. Muitos militantes nas comunidades de base refletiram sobre os principais marcos da trajetória iniciada por Jesus e seus seguidores; compararam com as principais colunas do que foi e é a religião católica. Sua conclusão fundamental é que se trata de duas realidades radicalmente diferentes e, em alguns aspectos, opostas. Uma coisa é o movimento fundado por Jesus nos anos de sua vida na Palestina, e outra realidade diferente a religião proclamada por Teodósio I no séc. IV como oficial do Império romano e defendida pela instituição eclesiástica católica. Jesus não fundou uma religião, senão que começou um movimento laico, à margem da religião judaica. Evidentemente, Jesus não “instituiu” nenhuma Igreja, nenhuma “estrutura eclesial” propriamente dita, nem uma doutrina, uma liturgia, um governo... Jesus pôs em marcha um movimento, que através de muitas circunstâncias e adversidades históricas desembocará em igrejas organizadas e, muito mais tarde, em uma Igreja centralizada. Jesus começou, talvez, atuando sozinho, mas logo reuniu um grupo de discípulos(as) em torno a si. Assim também haviam feito Buda, Confúcio, Sócrates. E também João Batista, de quem Jesus foi discípulo durante algum tempo. Um grupo de homens e de mulheres acompanha Jesus em todas as partes fazendo com Ele vida itinerante; mas também encontramos um grupo mais amplo de pessoas que, vivendo em suas casas e continuando em suas tarefas, são, no entanto, discípulos de Jesus, o apoiam, o recebem, o “seguem”. Todos eles formam o “movimento de Jesus”. Também nós nos sentimos e queremos ser discípulos(as) de Jesus. O Reinado de Deus nos reúne. O Reinado precisa de nós como grupo, mas também nós precisamos nos sentir acompanhados para poder ser profetas do Reino. Seu movimento nos impulsiona, e queremos impulsioná-lo. Move-nos a alegria da Boa Notícia e da esperança difícil do Reinado de Deus. Somos Igreja de Jesus. Mas, como é a “Igreja” que Jesus quis? Na origem do discípulado e da Igreja está a consciência de ter sido chamado. A vontade e a decisão de um são imprescindíveis, mas são despertadas pelo chamado de outro; pelo chamado de Jesus e, em último termo, pelo chamado de Deus. Isso é o que significa originariamente o termo “Igreja” (Ekklesia), “comunidade de chamados). Como se deu a passagem do “movimento de Jesus” para a “institucionalização da Igreja”? Tudo começou com Constantino no séc. IV que, mediante o edito de Milão (313), promulgou a tolerância do cristianismo, movimento que tinha sido duramente perseguido. Mas foi Teodósio I, o Grande, quem fez do cristianismo a religião oficial do Império Romano (edito de Tessalônica, 380). A partir desse momento, a religião cristã tomou como modelo a estrutura imperial. Os bispos aceitos pelo imperador foram autênticos reis em seus territórios. Os primeiros concílios (Nicéia, Constantinopla, Éfeso e Calcedônia) nos séculos IV e V, convocados pelo Imperador, desenharam as linhas básicas da religião cristã, distanciando-se da mensagem de Jesus de Nazaré. Esta nova religião adquiriu uma estrutura piramidal sob as ordens dos Patriarcas e bispos. Estes governam suas dioceses como senhores feudais, encarregados do sagrado (templos, ritos e objetos), ajudados pelos sacerdotes. O Papa, os Patriarcas, os bispos e os sacerdotes, todos homens, são os que regem esta nova religião, na qual a mulher está totalmente ausente nos órgãos de direção e poder. Esta religião se fortalece com uma legislação, contida hoje no Código de Direito Canônico. Com estes elementos fica formada a estrutura da nova religião cristã, dedicada sobretudo a administrar o sagrado. À semelhança do Império, a nova religião se converte numa instituição poderosa e rica, bem estruturada através de suas leis, preocupada especialmente em estender seu domínio no mundo, conquistando novas terras e aumentando o número de seus adeptos e seguidores. Esta é, em grandes traços, a religião que hoje a estrutura da hierarquia da Igreja católica defende. Muito diferente foi o movimento iniciado por Jesus de Nazaré em torno à sua pessoa e à sua mensagem sanadora e libertadora de toda escravidão e dominação. Jesus não foi uma pessoa consagrada, mas um leigo. “Jesus não foi sacerdote, nem funcionário do Templo, nem ostentou cargo algum relacionado com a religião... não foi um mestre da Lei... Jesus foi um leigo” (J. M. Castillo). Fugiu de todo poder e se preocupou especialmente das pessoas marginalizadas. Não fundou nenhuma religião, antes, entrou em conflito com a religião judaica e com suas instituições (sinagoga, templo de Jerusalém, lei do Sábado). Cercou-se de pessoas, mulheres e homens dispostos a continuar seu caminho anunciando a mensagem do Reino de Deus. Proclamou as bem-aventuranças como projeto do Reino de Deus. Denunciou as opressões e injustiças tornando realidade a salvação do Deus Pai e Mãe, através de suas curas. As mulheres tiveram um lugar destacado na vida de Jesus. Por tudo isto Jesus foi julgado pelo poder religioso e político de então, sendo condenado à morte. Hoje este movimento quer se fazer presente e continuar nas comunidades cristãs de base, existentes na Igreja, distantes em muitos aspectos da estrutura clerical e em conflitos com os interesses e objetivos da instituição eclesiástica. É preciso, portanto, diferenciar claramente estas duas realidades presentes no interior da Igreja: a estrutura vertical, patriarcal, da instituição clerical, que usurpou com exclusividade o nome de Igreja; e a organização horizontal das comunidades populares, homens e mulheres com idêntica dignidade e importância, mais próximas do sentido originário de Igreja. A primeira, fiel continuadora da religião católica declarada oficial de Estado desde o séc. IV, afastada do movimento leigo iniciado por Jesus de Nazaré. A segunda, seguidora do grupo formado por Jesus de Nazaré, e distante das preocupações da instituição clerical. Duas realidades diferentes e que não devem se confundir. A estrutura hierárquica tem o poder e os mecanismos de influência na sociedade, mas não tem a legitimi- dade de ser continuadora de Jesus de Nazaré e sua mensagem do Reino de Deus. A religião católica gira em torno ao sagrado (pessoas sagradas, lugar sagrado, ritos sagrados, doutrina sagrada). Ela segue basicamente os mesmos parâmetros do início de sua caminhada: estrutura piramidal em cujo vértice o bispo de Roma ostenta os três poderes (legislativo, judicial e executivo), organizada em torno ao Código de Direito Canônico. Dirigida unicamente por homens, tem um grande poder como Estado Vaticano, dispondo de infinidade de templos em todo o mundo nos quais se realizam celebrações de grande suntuosidade. Sua preocupação principal é ser cuidadora e guardiã do depósito da fé elaborado através do Concílios celebrados em sua história. Elaborou uma teologia baseada nos dogmas. Considera-se dispensadora da graça divina da qual é mediadora através dos sacramentos. Pelo contrário, o movimento de Jesus de Nazaré sobreviveu através dos séculos em pequenos grupos, muitos deles tratados como heréticos pela religião católica. Não tem poder algum, nem o buscam, mas o serviço, a exemplo de Jesus não veio para ser servido, mas para servir (cf. Mt 20,25-28). Vivem em peque-nas comunidades igualitárias em dignidade, mulheres e homens, e horizontais em seu funcionamento. Procuram ser coerentes com a mensagem de Jesus de Nazaré: anunciar o Reino de Deus aos pobres e marginalizados da sociedade (cf. Mt 10,7-8). Tem como guia as bem-aventuranças proclamadas por Jesus no sermão da montanha (cf. Mt 5,1-10). Partilham a vida e os bens tornando realidade a eucaristia, a exemplo dos primeiros cristãos (At 4,32-35). Levam à prática o único mandamento de Jesus, o amor ao Pai-Mãe no amor aos irmãos mais desfavorecidos (cf. Mt 22,37-40). Elaboram uma teologia fundada na experiência espiritual das diversas comunidades, atualizando a Sagrada Escritura e especialmente o Evangelho no momento histórico da sociedade. Diferenciar ambas as realidades é necessário e esclarecedor para toda pessoa que na atualidade busca ser coerente com a mensagem de Jesus de Nazaré no momento atual. A Igreja não uma realidade única e exclusiva, mas plural. Em seu interior convivem dois projetos diferentes. A hierarquia católica não pode, em exclusiva, apropriar-se do nome de Igreja, se não quer transgredir seu sentido originário. Igreja é principalmente a comunidade dos seguidores(as) de Jesus e não os representantes oficiais da instituição eclesiástica. A realidade de Igreja se visibiliza por outros caminhos diferentes da oficialidade do catolicismo, por mais que esta queira considerar-se “a Igreja”. Jesus de Nazaré não reconheceria hoje como seu movimento a Igreja católica, embora esta se proclame continuadora da primitiva Igreja. O movimento de Jesus é laico, realiza-se no mundo, trabalhando em favor da plena humanidade das pessoas, mediante a única lei do amor, a exemplo de Deus que é Pai-Mãe de Amor.